terça-feira, janeiro 23, 2007

03 de Janeiro de 2007? Não, não estava lá!

«Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e tibuteando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei - nem me importo - se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche (...)»

Raul Brandão - Janeiro, 1918

Li isto pela 1ª vez, há 10-11 anos? Confesso que, na altura, sorvi com todo o meu corpo e alma estas palavras, ecoaram na minha mente durante dias e dias, mas (há sempre um mas), corria o risco, tendo em conta o momento exacto da minha inebriez que, passados alguns anos ou até momentos, a desilusão se assenhorasse de mim e aquelas palavras perderiam sopro. Que me tornasse sóbria. Lembro-me de, anos mais tarde, não muito mais tarde, ter estado com alguém e esse alguém achar-me muito serena. Assim de repente, até soa bem. Serena, tranquila. ACORDA! Pensei eu quando ouvi esta descrição. Serena? Como uma sereia, cativante, sedutora, mas que nunca chega a arrebatar? That's it?!

Eu estava coberta de brilhantes, mas estes recusavam-se a brilhar. Porquê eu? E o que é que ele queria, uma bailarina exótica, uma boémia? Se era pretendido um momento bonito, romântico, lisonjeador, preferia que tivesse dito: tens uma pele muito bonita... :-) Todas as mulheres querem ouvir um comentário desses, contudo, talvez por volta dos 40 anos...

Mas fez-me pensar. E optei por evitar mais momentos desses, sempre que tivesse escolha, tentei encontrar um adulador mais capaz (demorou algum tempo) e queria "o momento perfeito". Não existem momentos perfeitos. Existem sim fragmentos no tempo, escassos minutos, que dão significado à nossa vida, tornando-a perfeita... Não os controlamos, não são estudados por nenhuma ciência exacta ou menos rigorosa, mas depende de nós agarrar o momento, quando este se encontra à nossa frente. E a responsabilidade, é toda nossa. É a nossa vida que está em jogo, o que é muito para ser decidido num escasso momento, não anunciado, mas quando nos toca, somos garantidamente privilegiados. Don't waste it...


Só consigo imaginar estes momentos, com imagens como esta: Buenos aires, um salão de dança, Tango, um homem sentado num canto escuro com a sua aguardente velha já aguada, vestido com roupa escura e discreta, cabelo curto, um corte limpo, mas com alguma irregularidade que mostra uma ponta de rebeldia, mas com a camisa apertada até ao último botão, mostrando seriedade ou timidez... Do nada, uma silhueta dançante e inebriante, arranca-o da cadeira de maneira brusca e sensual e antes que ele dissesse que nunca dançara um Tango, os seus corpos já deslizam pela pista de dança. Ninguém repara neles, mas mesmo de relance, dá para adivinhar os seus corpos perfeitamente encaixados um no outro, completando a tela de um artista que, passados muitos anos a desenhar traços e a misturar cores, só agora encontra a sua inspiração, ou seja, a essência da sua obra. E nesse momento, apercebe-se que esta, a obra, já não é sua, pois está completa e deixa de ter dono. Tem de ser partilhada pelo mundo e ele não se pode opor, nem impugnar aquela que outrora havia sido a sua obra. O protagonismo pertence aos corpos que se denunciam na tela, na pista de dança, que se anunciam ao mundo.

Parece injusto, mas não o é. Os compositores de música, quando terminam uma obra sua, mesmo que sejam também instrumentistas ou intérpretes, sabem que esta irá ser ser tocada por milhões de pessoas e cada vez que é tocada, a estes pertence. Pois cabe-lhes a eles, dar-lhe corpo e alma, forma e conteúdo. Por isso, para se alcançar o tal momento de perfeição, de o encontro de uma identidade e de uma entidade, temos que sair, deixar tudo, para assim nos ser permitido voltar. Passamos a desconhecer tudo. Pois quando conhecemos as coisas, ou as pessoas, sentimo-nos vulneráveis e criamos barreiras, esquemas, pensamos duas vezes no que vamos dizer, corrigimos movimentos, controlamos o volume das nossas gargalhadas, contamos os nossos sorrisos, damos pequenos passos e precisos e tentamos ser sempre concisos. Nada fica ao calhas. Por isso, para conhecermos alguém, para os nossos corpos se entrosarem, para as nossas vidas não se "desenredarem", é necessário partir para o desconhecido para entrar verdadeiramente no conhecido.

É estar a milhas de distância do nosso porto seguro, sozinhos e numa praça deserta, repararmos que estamos a ser observados por um desconhecido. E pensamos - Estava eu a mexer no cabelo, a tentar baixar a minha juba, e ainda há pouco endireitava as alças do soutien. E aquela borbulha... Ai e eu estava a cantar. Que horror. E ele viu tudo. Eu nem a minha mãe deixo entrar na casa de banho. E agora? O que é que eu faço? Fujo? Para onde? Está escuro e não conheço bem o sítio. Só estamos nós os dois e mais ninguém. Se estivesse aqui alguém amigo. Tenho tantos amigos, porque é que vim passar férias sozinha?! E sinais? Existem sinais para tudo, porque não um sinal sonoro avisando do perigo do desconhecido? Mas se avisarem, deixa de ser desconhecido... Eu já não iria mexer no cabelo, as alças provavelmente ficariam logo direitas e a borbulha, já estaria coberta de base. E aí, já não seria eu.

De repente, parece a cena de um filme. E no filme, só nós, os protagonistas é que estamos lá. Os outros, não estão. É um filme independente e muito alternativo. O budget é reduzido, mas o elenco, arrojado. Um ou dois efeitos especiais, um ou dois adereços, um diálogo breve mas intenso e, dita a deixa final, o realizador desaparece. E as luzes incidem sobre nós.
Afinal, não era um desconhecido. Era um amigo bem parecido meu conhecido e tornado desconhecido que sempre achei muito parecido comigo.
Prometemos não contar nada a ninguém sem antes contarmos tudo um ao outro. E tudo o que se passara, ficaria entre nós. Seria como uma situação caricata, com piada, que contada, perde a piada. Porque é preciso estar lá. Mas só as pessoas certas: a bailarina, o virgem no Tango, os corpos enredados e revelados, os amigos desconhecidos. O que sentiram, o que disseram, o quanto dançaram, o quanto suaram, se porventura se beijaram e se amaram, só eles sabem. Porque nós, não estávamos lá. E se estivéssemos lá, isto tudo poderia não acontecer. E amanhã, poderia ser demasiado tarde.

Por isso, que se perca a mania de querer estar em todo o lado e com toda a gente! Sai de cena quem não é de cena. O momento só acontece se estiverem presentes os futuros ex-desconhecidos que nunca deixarão de estar comprometidos um com o outro, unidos pelos segredos que partilham, daquele momento. É a sua private joke. Para as coisas acontecerem, muitas vezes, não podemos estar lá. Só eles é que têm de lá estar. Eu não estive lá.

Por isso, criem os vossos momentos. Não sejam somente serenos. Sejam obscenos para encontrar o que realmente vos faz feliz. Mas sejam. Sejam "pobres de espírito" e não pensem muito! Façam quando vos der na telha! Mas façam-no desnudados de qualquer preconceito ou barreira, entrosados ou enroscados. Nunca enrascados... Se não, o momento passa a um tormento e de repente, sem darem conta, muitos estiveram lá, com vocês e muitos desejam vocês que passem a lá estar. E mais de dois, em certos locais de Lisboa, já é um ajuntamento. Tem de ser visceral, entendem?

Eles não ouviram, os privilegiados, mas estas palavras ecoavam na atmosfera... Eu não estava lá, mas eu sei que ecoaram...

«Oh! meu bem-amado
Quero fazer-te um juramento, uma canção
Eu prometo, por toda a minha vida
Ser somente tua e amar-te como nunca
Ninguém jamais amou
Ninguém
Oh! meu bem amado, estrela pura aparecida
Eu te amo e te proclamo
O meu amor, o meu amor
Maior que tudo quanto existe
Oh! meu amor»

Não preciso dizer mais nada... São palavras que quero, um destes dias, quando se der mais um desses momentos, sussurar àquela pessoa que tive que desconhecer para voltar a conhecer... E estas palavras não têm dono, por isso não posso de maneira algumas atribuí-las ao seu "dador". Contrariamente ao R.Brandão, agradeço a Deus por não ter estado presente no Vosso momento... É tão bom ter algo só nosso...